Pedimos desculpa por o texto de hoje não ser da nossa autoria. Fazemos a devida vénia ao director do jornal «i» autor destas linhas que [re]publicamos. Pela sua actualidade, pela sua importância, merece uma leitura atenta.
«Já ninguém se entende no país dos brandos costumes e agora pegou a moda de todos acusarem todos. O país está a brincar com o fogo: não tarda nada esquece a importância do significado da palavra liberdade. E aí…
O regulador dos media, a ERC, vai investigar se existem interferências do governo no sector. Os juízes, por sua vez, querem saber se existe espionagem política no país. Todos se sentem vigiados, mas ninguém sabe se essa sensação é real. Ou melhor, o director do "Sol" acusou claramente pessoas ligadas ao primeiro-ministro de lhe terem prometido dinheiro (para os problemas financeiros do semanário que dirige) em troca de não publicar notícias sobre o Freeport. E um juiz de Aveiro sustenta que Armando Vara está envolvido em negócios obscuros. O que se passa neste país?
Já aqui se escreveu o óbvio: não é possível que todas estas acusações terminem sem consequências. E a razão não se prende apenas com essa, bem simples, de apanhar os culpados. O mais grave é que este clima de suspeita que se instalou em Portugal, somada à crise financeira e às discussões sobre a bancarrota do país, pode estar a condenar o significado de uma das palavras mais importantes nas democracias modernas - a liberdade. Radical? Repare-se.
UM: A estrutura social do país e o seu modelo económico geram dependentes do Estado: 40% da população só sobrevive com apoios do Estado e, de todos esses portugueses activos economicamente, sobram ainda cerca de 1,6 milhões de famílias que vivem com pouco mais de 1600 euros por mês e, praticamente no topo da pirâmide de riqueza, umas 180 mil famílias fiscalmente ricas - com rendimentos de 3000 euros líquidos todos os meses. São praticamente 78% da população activa que, na verdade, não é economicamente livre nem socialmente móvel. Falta- -lhe dinheiro para comprar uma casa, para escolher escolas privadas, para optar por saúde paga e, descobriu-se há dias (estatísticas de Bruxelas), falta-lhe 1000 euros para fazer frente a despesas inesperadas. Ou seja, estas pessoas são totalmente dependentes do sistema - nada do que façam os conseguirá retirar da situação em que vivem. Não vale a pena falar de empreendedorismo: boa parte destas pessoas trabalha numa das 80% de empresas que compõem o tecido nacional: empresas com menos de quatro trabalhadores. Nenhum destes membros de quase 4 milhões de famílias portuguesas é livre.
DOIS: Se todos eles sentirem o peso dessa injustiça social, e em cima dela o fardo da inexistência de uma justiça (as pequenas empresas, quase todas as que existem em Portugal, não confiam na justiça para cobrar, por exemplo, as dívidas que têm junto de clientes), está preparado um cocktail explosivo para favorecer mais crimes e menos liberdade. O economista Gary Becker* não tinha dúvidas sobre o efeito dos incentivos na decisão de praticar o crime. Se a esses incentivos, que vimos, se adicionar a impunidade dos poderosos (ou a sensação de que todos metem a mão para ficar com o seu), Portugal tem tudo para se parecer com uma província europeia da América latina.
É neste momento que os monárquicos choram o seu rei. Os adeptos de sociedades abertas e capitalistas preferem avisar: olhem o que acontece quando se retira liberdade à sociedade.»
*Gary Becker:«INCENTIVO AO ROUBO - Conquistou o Nobel em 1992, depois de ter estacionado num lugar proibido... Aí descobriu que o comportamento humano responde a incentivos racionais. Se os retornos potenciais de um crime forem menores que o custo da penalização, então as pessoas vão cometer mais crimes. Portugal está a brincar com esta teoria.»
[por Martim Avillez Figueiredo, Editorial Publicado em 27 de Novembro de 2009 no jornal «i»]